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Parte VII - A vigília (os procedimentos da testemunha)

(Extraído de TANTÁLIA - O ator como testemunha no processo criativo, monografia apresentada em 2014, orientada por Maria Thais Lima Santos)

[Paira entre nós um tipo de paz violenta, de medo sutil de sermos descobertos, mesmo ignorando se há riscos. A sensação é de risco. Deve se parecer com aquela que sente a testemunha no escuro, quando aponta seu acusado por detrás de uma vidraça-espelho, protegido de eventuais ataques provenientes dele. Apesar de ser considerada uma técnica comumente usada em salas de interrogatório, há quem duvide que os que estão do lado iluminado do vidro vejam apenas o próprio reflexo na superfície (ou que contentem-se com isso), de modo que se sentem incomodados quando pensam que os prisioneiros talvez não estejam vendo apenas os próprios olhos quando olham assim, fixamente, o espelho.]

Observar é um ato de lucidez que exige do ator um modo vai ativo de existência, que refuta a passividade porque se constrói na ação. Neste caso, é o olhar da espreita, que é tanto uma ação de paciência quanto um vislumbre relâmpago de possibilidades. Creio que a provocação é a parte visível da observação. A maior parte da nossa criação se deu por meio de procedimentos de provocação, a partir de isca temáticas e intuições de todo tipo, mas também racionalmente, como forma natural e instigante de exploração de caminhos.

Ficcionalmente, a maior fonte de materiais a serem explorados provinha da observação. Nos colocamos como testemunhas do que se apresentava por imagens, situações, caracteres, motivações físicas. Percebemos que, até que se crie uma linha temática, qualquer material tem sua valia quando o que temos a perseguir são intuições. Aliávamos a estas intuições as leituras de possíveis caminhos teóricos e fabulares, e nossas construções se encarregaria de evidenciar esse diálogo. Nos aproximamos de Mário Bellatin e estrutura episódica e ácida, Macedonio Fernandez e sua relação com a sensibilidade, Harold Pinter e sua exploração da realidade, etc. Recorremos, continuamente, a imagens pictóricas e literárias para cada fase do trabalho, criando uma imagem nossa por associação.

O canalizador deste material eram as muitas figuras que desenvolvíamos. Até o final do processo, não era nossa preocupação manter fidelidade a uma figura que poderia não dizer sobre tudo. Levávamos muito das observações externas como apostas para os ensaios, e era com rigor que oferecíamos a terceiros acontecimentos e imagens que só estiveram disponíveis no passado, e para a singularidade de cada memória, de cada modo de apreensão. A partir do momento em que o ator tenta contar o que observa, seu corpo e sua percepção passam de observador para observado. E assim essas funções se revezam até o fim de sua improvisação.Somos nós os responsáveis por conduzir as imagens aos olhos de outros, e a cena deve ser o relato de acontecimentos. Como alguém que presenciou algo grandioso e deseja que em seu relato a história se presentifique - pois não se trata de uma história qualquer que pode ser abandonada sem remorso -, o ator não pode desistir das imagens que observa. Ou elas tomam corpo, ou elas devem ser esquecidas.

A nossa única base fixa é a criação. É ela que nos orienta, todo o restante se transforma em acordo com isso, não necessariamente simetricamente. Tudo decorreu de provocações. Toda dinâmica de cena que pensávamos previamente era para o outro, e tudo o que fazíamos em cena vinha, em parte do outro. O cruzamento de espectros da sala do morto se repetia pelo gosto de fazer para o outro e de ser feito pelo outro. Todo tipo de provocação era válido, bastava ter o desprendimento suficiente para não se deixar convencer pela inutilidade de cada proposta. Tudo deveria ser cogitado, ao menos.

Muito do processo se deu por meio de acordos prévios. A organização dos ensaios, as proposições que exigiam mais tempo para amadurecerem, encontros que eram marcados em endereços específicos, como igrejas ou bares, ou incertos como em pontos de ônibus ou endereços sem número válido, etc.

Paralelo a isso, muito também ocorreu em torno da ideia de parceiros temporários: Eu, tu, ele, ela, nós, vós, eles, e outros tantos rearranjos possíveis. Nossos acordos não necessariamente eram decisões do coletivo como um todo. No que envolvia a criação, poderíamos estabelecer segredos, combinações entre duplas ou trios, ou mesmo entre a plateia e o ator. Desse modo, em que sabidamente não há um conhecimento unificado, tudo o que não é dito ganha a força de algo que se passou.

Tal como na atuação, a dramaturgia não deixou de ser repensada a cada momento. Um de nossos procedimentos mais comuns, que ao longo do processo se desenvolveu bastante, foi a manufatura de diferentes proposições dramatúrgicas. Escritas feitas coletivamente, uma mesma situação roteirizada independentemente, trechos de prosa, narrações, imagens romanceadas, textos feitos por mim para o outro, em segredo, e vice-versa, etc, que objetivavam um desequilíbrio à atuação. Era um procedimento comum do grupo omitir trechos inteiros de um roteiro, para que cada ator lidasse com algumas informações e fosse surpreendido por outras, tirando um pouco de si o controle da ação e reagisse naturalmente. Se eu, como provocadora – o criador, de modo geral - omito informações, é porque quero que lacunas sejam preenchidas. Mas não posso preenchê-las sozinha, idealmente. Não há vítimas ou vilões quando não há tentativas de esclarecimentos.

Este tipo de procedimento gerava uma tensão interessante entre os atores, pois, em cena, eles lidavam com segredos e com expectativas o tempo todo frustradas. A incerteza da própria ação obrigava os atores a crerem profundamente nas informações que lhes eram dadas, e assim, era difícil haver os comuns embates que surgem em improvisações, geralmente por motivos banais como o cumprimento de um roteiro – visto que ele não era o mesmo para todos – ou pela descrença e abandono do outro. O jogo era comprado por todos os envolvidos, que, num esforço coletivo, se empenhavam em descobrir o desenlace de uma cena que os mantém em relação. O fator inesperado dava humanidade às figuras representadas, colocava-as sujeitas a qualquer coisa, assim como capazes de qualquer coisa. Foi o mais próximo que cheguei de uma construção dialética de figuras ficcionais.

Partindo dessa formulação de roteiros de improvisação que se alimentava sempre dos ensaios anteriores e de omissões contidas neles, todas as relações construídas entre as figuras pareciam evocar um passado compartilhado, que não precisa ser evidenciado em falas. A sensação era de que todo o material estava à disposição para ser utilizado quando fosse necessário.A conclusão a qual chegamos ao final do processo de Tantália é de que as figuras que criamos em momentos diferentes do processo não deveriam ser descartadas e,deliberadamente, escolhemos que não seriam vistas – assim como já não eram vistas – como etapas de um processo gradual, mas parte de um todo ficcional, de um corpo ficcional capaz de abrangê-las. Após a peça, vejo esta deliberação da seguinte maneira, aplicada a mim:

EU, atriz, que dou a ver.

ELA, figura definida, direta, que evoca: Uma menina sem importância que vive das ficções que cria para si e que aceita as ficções que lhe dão. Ela própria, um cromaqui.

ELAS, figuras indefinidas, indiretas, que sustentam o todo o passado da ação: A sacoleira insone; a garçonete de um restaurante gaúcho, com olhos de cachorrinho de plástico, a menina que dançou com um ursinho nas lojas americanas e porque sorriu, foi perseguida como ladra; aquela que acha que Deus é amor com cabelos longos e poderes, e que entrou na cripta da Sé por convite do padre; A outra que roubou um vaso e uma fotografia de um cemitério; A velha; A moça que fez um comercial há muitos anos e crê que a reconhecem; A criança psicopata; A grávida de uma almofada, que dorme com um homem em putrefação, etc, etc.

A ideia é de que estas figuras não estariam presentes através de alusões, apenas, mas das operações que cada uma suscitou.

Gosto de pensar que a construção das figuras e da peça se deu pela lógica da ilusão de óptica. Nenhuma das figuras era confiável, pois não era do interesse do grupo o sucesso de cada cena, mas sim a sua exposição e a dos atores, aspirantes à sensibilização. E logo que ela se firmava, dissipava-se com igual rapidez, de modo que, como atores, tínhamos a sensação ininterrupta de que algo estava prestes a fracassar.

Individualmente, criamos assim nossas próprias lógicas de existência, e esse foi um dos fatores mais difíceis de sintonizar entre o grupo. Unir as criações para o espetáculo. Vi na etapa das escolhas prcoessuais, que conduziriam à finalização da dramaturgia e da peça, a maior dificuldade do coletivo. Com frequência caiamos numa incomunicabilidade não proposital, gerada pelo contraste das linguagens de cada figura. Construir uma maneira de representar que comporte todas as construções anteriores pessoais, e ao mesmo tempo manter um olhar responsável pelas construções dos outros e pela linguagem da peça que necessitava de síntese e olhar externo para que não se perdesse em explosões de subjetividade ou indefinições era um trabalho bastante exaustivo. A afinidade discursiva entre os membros não poderia planificar a forma que pretendíamos dar ao espetáculo, e nesse caso o perigo era entrar em um estado de inércia por cordialidade democrática.

Esses problemas anteriores ao espetáculo suscitaram a percepção de que deveria haver permeabilidade entre as lógicas de existência das criações, também deveria haver entre nós. O momento não era mais o das proposições sem vínculo com o produto final, pedia escolhas e um ponto de vista, e era necessário sair do campo da confiabilidade mútua e homogênea e aceitar interferências diretas, assim como intervir sem receio de ser mal-interpretado, solicitar cortes ou cortar sem um apego inerente ao ator, etc.

É evidente, no entanto, que a linguagem é fragmentada, pois mesmo que tenhamos atribuídos rédeas a vozes mais ativas, o processo inteiro tinha como foco um estudo pessoal da atuação, uma racionalização do próprio modo de criar para que este se ampliasse – mas nem sempre ultrapassamos a primeira e mais importante estância, que era a do ator. O intento desta obra foi a realização de um evento que possuísse momentos ficcionais reais, verdadeiros mesmo que em lapsos, de uma atuação auto-crítica que reconhece a si própria e aos seus recursos.

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