Parte III - A Cova (coletivo e inquietações)
(Extraído de TANTÁLIA - O ator como testemunha no processo criativo, monografia apresentada em 2014, orientada por Maria Thais Lima Santos)
[Na sala há um corpo e mais três pessoas vivas, além de mim. No total somos cinco, e a impressão é de que chove lá fora, porque o último a entrar tinha os cabelos molhados e uma capa de chuva rasgada. Sinto a cabeça vazia. Uma luz vermelha bastante mórbida nos ilumina insatisfatoriamente e eu me lembro que não durmo há tanto tempo que não me lembro da sensação. Às vezes pego no sono, mas ele não permanece. Hoje, agora me lembro, fiz uma descoberta, por isso comprei a cerveja, eu entendi que a morte chega para todos, e que eu não me importo com isso. Por isso entrei nessa sala em que tudo já tem um cheiro de putrefação. Esta é a primeira vez que eu vejo um cadáver, e ele não usa chapéu. Sempre achei que os mortos deviam usar chapéu, agora vejo que não. Acreditava que um morto parecia uma pessoa quieta e adormecida, e agora vejo que é exatamente o contrário. Vejo que parece uma pessoa acordada e raivosa, depois de uma briga. [1] Mas tenho vontade de buscar solidariedade nos outros nessa minha atual ânsia e envelhecer, de mostrar que todos estão aptos a acabar cansados, com os pulsos fracos e com essa necessidade de fotografar tudo o que não pertence à própria vida.]
Estar diante de um cadáver é o motivo para o primeiro ensaio. Esta foi a proposta objetiva de um dos integrantes num ponto em que a discussão já não dava conta do que ansiávamos. Teríamos hora marcada para levar uma figura intuída por meio de observação a uma sala onde jazia o cadáver de um boneco de pano. Eu poderia – apenas agora, em tom de brincadeira - dizer que zelávamos pela figura do diretor, que estava ausente por deliberação do grupo e assim permaneceria até o final do processo.
Para que esta decisão do grupo se justifique, descrevo uma experiência anterior que alterou qualquer percepção minha a respeito do ofício do ator, estimulada pela professora Alice Kyomi: Trata-se do exercício Solitude[2], um treinamento preferivelmente contínuo, mas de qualquer forma intenso. De início, requisitava dos atores um indício de pesquisa individual, a ser desdobrada em cena. Cada pesquisa poderia contar com os elementos que conviessem ao ator, desde que fossem combinados durante a ação, e toda ela seria assistida pelos demais durante um tempo pré-determinado. O jogo da Solitude lançava os atores a um abandono à própria pesquisa - por si só vulnerável, dependente ao extremo do ator para se tornar interessante. As pesquisas individuais assim expostas obrigavam os atores a analisarem a necessidade de cada elemento, e a se colocarem no lugar de quem não compartilha dos conceitos que as norteiam. Na segunda etapa do exercício as pesquisas têm um tempo determinado para habitarem o mesmo espaço, porém sem necessidade de diálogo direto. Os envolvidos independem um do outro, mas podem utilizar-se como material, desde que não modifiquem intencionalmente a pesquisa do outro em prol da sua. Neste momento ocorre algo um processo físico de decantação cênica: cada ator é um fluido ou sólido com textura e densidade próprias que habita um recipiente de ensaio, e no movimento de uma grande colher que apelidarei de Jogo, todos os elementos por um momento se confundem numa mistura que apenas o tempo dirá se é solução homogênea solução ou se permanece mistura heterogênea. A Solitude é, assim gosto de vê-la, uma prática de desenvolvimento da autonomia do ator e de sua criação que só existe se estiver em relação com os demais e suas respectivas criações. Em nenhum momento nos vemos sozinhos, pois a nossa vulnerabilidade é compartilhada; Assim sendo, solidarizados torcemos pela cena do outro e, egoisticamente, pelo cuidado que a própria criação demanda, zelamos pelo outro para mantê-lo a uma distância segura. A Solitude difere da Solidão, acredito, no seu movimento de ação: na solidão o indivíduo é como um centro gravitacional, num olhar externo afunilado em direção a si – enquanto a solitude é a dos indivíduos que orbitam, e que podem se chocar ou apenas permanecer fiéis a sua rota, ainda assim parte de algo maior, voltados para o exterior.
Infelizmente a experiência da Solitude durou pouco, mas me fez – e aos envolvidos – debruçar pela primeira vez sobre o Jogo, este conceito volátil da prática de ator. E mais ainda, sobre a responsabilidade que o Jogo demandava dos atores para se instaurar. Havia a presença de um condutor, mas ele poderia mudar, se houvesse desejo; poderia se anular se houvesse necessidade. Ele se assemelhava a um mensageiro, ou um observador silencioso das regras do jogo. Por maior que houvesse barulho, era no silêncio que tudo se passava, tamanha obediência ao jogo (ele sim, o principal condutor). E por alguns momentos a sala de ensaio parecia ter vida própria, uma respiração única – uma tessitura de destinos que se completavam sem interferência externa.
Desde então, me atraiu a ideia de um ator mais responsável pela cena. Partindo do pressuposto de que a figura que mais se aproximava desta função (ou menos a mais reconhecível) era o diretor, cheguei à conclusão óbvia de que o ator ampliaria seu horizonte de ação se abrangesse em seu trabalho também a responsabilidade do diretor, ou se ao menos se apropriasse do que é anexo ao trabalho de atuação. Esta dualidade diretor-ator interessava-me por levantar a questão de como um ator lidaria – e o quanto ele aprenderia - com a autonomia de ser responsável por si mesmo, por sua criação e pelos outros e suas criações. Como um ator poderia ver-se de fora e interferir no próprio trabalho com a objetividade de um diretor? Como, em cena, poderia assistir aos outros e suas atuações e saber-se assistido, atuando? Como funcionaria um grupo no qual não há um diretor, mas uma responsabilidade dividida de levantar um espetáculo que priorize a atuação? Seria possível retomar a sensação de tessitura da sala de ensaio durante um processo inteiro, tendo como estruturas apenas atores que se observam e se conduzem?
[1] Vejo que têm a cabeça pontuda e um lenço amarrado na mandíbula. Vejo que tem a boca um pouco aberta e que se percebem, por detrás dos lábios arroxeados, os dentes escuros e irregulares. Vejo que têm a língua mordida de um lado, grossa e pastosa, um pouco mais escura que a cor da cara, a mesma cor dos dedos quando os apertamos com um barbante. Vejo que tem os olhos abertos, muito mais que os de um homem; ansiosos e vazios, e que a pele parece de terra calcada e úmida. (MARQUEZ, 1974, p. 12)
[2] A prática é atribuída a Alexandre del Perugia, performer, diretor, ator e professor.