Parte II - O preparo do solo (o imaginário antes do encontro)
(Extraído de TANTÁLIA - O ator como testemunha no processo criativo, monografia apresentada em 2014, orientada por Maria Thais Lima Santos)
“Quando tudo nos leva a dormir, olhando com olhos atentos e conscientes, é difícil acordar e olhar como num sonho, com olhos que não sabem mais para que servem e cujo olhar está voltado para dentro. É assim que aparece a ideia estranha de uma ação desinteressada, mas que mesmo assim é ação, e mais violenta por estar ao lado da tentação do repouso.”[1]
Antes do começo, ouvi um relato feito pelo cobrador de um ônibus ao motorista sobre um outro motorista de ônibus que agarrara uma mulher pelos cabelos durante seu expediente e em seguida batera a cabeça dela contra a janela algumas vezes. O motorista que ouvia balançava a cabeça em reprovação, isentando-se de qualquer comparação, e ao resumir o ato de seu companheiro, disse que “hoje em dia é assim mesmo, todo mundo que tá andando aí fora é um barril de pólvora” - e nesse momento os olhos do ônibus se voltaram para fora, como num safári - “uma faísquinha e bum!, explode”. Pensei naquela imagem por algumas semanas, incluindo-me nela. Barris de pólvora em caminhada, em elevadores, em rampas rolantes... Na ocasião, por esse filtro, vi cada transeunte parecer mesmo à beira de um colapso. Numa metrópole como São Paulo, se é para isso que se olha, as rugas parecem mais fundas, as discussões infrutíferas, o cansaço parece não renovar-se no descanso. Todo modo primário de relação é combustivo, inflamável, embora anônimo.
E é o anônimo que passo a observar. Me interessa a possibilidade de combustão espontânea do anônimo. Vejo-os como uma categoria de pessoas que não quer se fazer ver, e que justamente por isso agem como atores num palco do qual eles conhecem perfeitamente cada esconderijo ou saída lateral para evitar abordagens. E tudo o que é permitido ao que é anônimo, assim como tudo que é permitido ao ator que interpreta um anônimo. Uma cena do filme Nostalghia (Tarkovski), em particular, me chama atenção: Um senhor sobe um monumento público em manutenção para discursar. Acima, vê-se a estátua imensa de um herói sobre seu cavalo com sua imponência fragilizada pelos andaimes que o restauram, acompanhado de um anônimo que grita. Abaixo, transeuntes indiferentes. Acima, um homem cuja existência se deu no isolamento faz um discurso que fala à humanidade e depois ateia fogo a si mesmo. Abaixo, resignação e motivações pessoais. O anônimo que teve por objetivo queimar suas palavras diante de um público mudo acaba emudecendo, e tudo volta ao normal.
Interessa-me também O velho, e seu ineditismo. Tudo mais que se repete, que é perpetuado de geração em geração de forma cíclica, mas com nova roupagem. Assisto minha geração em berros contra o antigo, incapaz de reconhecer os reflexos da própria juventude nas rugas de um poeta e me aproximo do velho, que em sua idade tem o privilégio da liberdade, ou de poder ignorar a opinião dos jovens e do futuro, assistido apenas pela morte próxima.[2]
Me atrai para fora do meu apartamento a ficção das janelas a frente, como atrai a todas as pessoas de espírito minimamente curioso. Desse modo, tendo na minha janela uma paródia da Janela Indiscreta de Hitchcock, vi nas outras ficções tão diversas, emolduradas por luzes incandescentes ou frias escolhidas para aquelas encenações, e percebo que nada foge a essa sensação de ficção. O cinema permaneceu como um suprimento de ficções paralelo, ao qual sempre retornei. Fui especialmente capturada, por alguns deles: Morangos Silvestres, Quem Tem Medo de Virginia Woolf e Uma Mulher sob Influência. Em todos as fronteiras entre verdade e mentira parecem se nublar pelo trabalho de atuação, e a ficção ganha mais realidade, talvez do que o que a motiva.
Penso na Mentira e sua credibilidade. Assisto a discussões políticas e me chama atenção o momento em que uma realidade se constitui no discurso de alguém - seja ela individual ou coletivizante. Como um filho que nunca se viu, mas se descreve como se estivesse no banho, e então ele está no banho. Ou como um diálogo com um demônio invísivel, e então ele se faz ver. Interessa-me toda forma de construção da mentira, desde que se creia em sua veracidade, e também as verdades que de tão recorrentes, tornam-se inquestionáveis e absolutas – e a partir disso, como se explora a relatividade dos dois extremos por meio da atuação. Por meio da compreensão da duração e do alcance da verdade e da mentira, como o ator consegue nublar limites reconhecíveis e atribuir credibilidade à mentira, ou às verdades não tão merecedoras de honrarias. Isso inclui dar ao espectador a possibilidade da desconfiança ou da cumplicidade diante de personas ou situações que, em sua primeira leitura, seriam dignas de aversão. Um trânsito de mão dupla, entre mentir e assumir a condição de hipócrita ou tratar da verdade como um louco constitui a própria realidade.
[1] Idem, p. 6-7.
[2] KUNDERA, M. – A Vida está em outro lugar, p. 291.