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Parte I - Fermentação

(Extraído de TANTÁLIA - O ator como testemunha no processo criativo, monografia apresentada em 2014, orientada por Maria Thais Lima Santos)

Ainda agora me debrucei sobre um fenômeno. Água morna, açúcar, fermento e tempo, uns quinze minutos ou mais, e no retorno um caldo esponjoso que respira, e que parece poder crescer o quanto lhe aprouver, independente do formato estreito demais do pote escolhido. No que me aproximei, no entanto, não sei se a minha respiração ou meu olhar, inspirou na fórmula uma timidez aguda, que transformou sua inspiração em expiração - e em minha curiosidade pelo crescimento, depressões se formavam. Uma desconfiança parecia pairar entre nós duas. A esponja e eu. Ela, observada, minguou, e eu, ansiosa, observei um indício de que meu pão não daria certo.

Há algo de mágico no olhar, que todas as crenças culinárias de família confirmam no endurecimento do caramelo, no ensolamento do bolo ou na fervura da água, assim como há algo de muito maior no que não há atingido por esse olhar. E entre o olhar e o seu objeto ocorre qualquer coisa que se interpenetra. Assim na culinária, assim no teatro. Vi-me, e ao meu trabalho, nessa relação entre o fermento e o olhar. Vejo-me ali, entre a pressa de progredir, de fazer acontecer, de produzir espetáculos, de disputar editais, de buscar relevância na minha criação, de conectar-me com o ancestral enquanto trato de temas contemporâneos, etc; E a fermentação ebulitiva do que é, existe por si, e desmorona diante da expectativa. Estar em cena é como ser conjunto de elementos em reação, que esquenta não ao contato com luzes teatrais, mas ao gasto de energia propositiva, e cresce, transborda o recipiente se não teme o olhar externo.

A pressa do cozinheiro é também a do ator diante de seu fermento, de sua ação. E o receio do fermento é também o do ator em ação diante de seu público. O ator é cozinheiro e fermento a um só tempo. O cozinheiro é sábio, atento e curioso. Pode-se dizer que é um manipulador na lida com os ingredientes, consciente do resultado da receita, mas ainda capaz de se surpreender com seu sabor. O fermento respira e amplia-se irracionalmente, e ignora completamente a sua serventia futura no momento presente enquanto padece, multiplica-se e transforma-se em questão de minutos; é a versão pueril da peste de Artaud, do momento em que se instaura o teatro e sua “gratuidade imediata que leva a atos inúteis e sem proveito para o momento presente”[1]. Vê-se que a matéria sofre, e que sua natureza não a permite agir diferente. Assim é o fermento em sua química, o pestífero em sua patologia, e o ator em sua exposição: O fermento cresce em respiração, o pestífero em loucura, o ator em ficção - sendo o último o único cuja organicidade não é o fator mais óbvio, devendo conquistá-la. O ator, nessa tríade, é o único consciente de que a perda (de tudo o que o limita) é o objetivo a ser alcançado conscientemente para que algo aconteça.

Inicio este escrito comparando a fermentação aos ossos do ofício do ator por não ver neste processo uma beleza explícita, fácil de ser contemplada; é antes uma etapa grotesca e extremamente sensível de uma receita, e que determina a sua qualidade final. O paralelo desta etapa poderia ser a preparação de um ator, sem que isto remeta ao momento – pelo qual já passei como atriz – em que se crê que meu trabalho progride em direção a um objetivo. Neste caso, deste projeto, não há objetivo, nem progressão: Há uma aquisição de consciência – de uma certa consciência0. Todo o processo que resultou em Tantália e na escrita que segue partiu de um auto-reconhecimento e de uma aproximação crítica do meu fazer – e de todo o rigor que provém disto -, algo que nunca antes havia me demandado tamanha energia.

O meu projeto de atuação era, talvez, o progresso, a chegada a outro ponto de atuação, a exploração de territórios desconhecidos ou qualquer um desses objetivos vagos que uma atriz iniciante considera nobres. Já conseguia estar em um palco sem tremer, sem enrubescer; poderia provocar risos e empatia, se necessário; já era capaz de cantar afinadamente e de dissimular a vergonha diante de uma plateia de juízes. Ótimo. Estava apta a executar papéis e reivindicar aos diretores jovens a minha autonomia de criação.

Faltava, porém, descobrir que autonomia era esta que eu idealizava, e que território era este que eu já estabelecia como fronteira a ser ultrapassada: e descobri que é o território da própria Atuação, e que ele é muito mais extenso do que um olhar voltado para mim mesmo consegue alcançar. Não há fronteiras visíveis nem caminhos progressivos ou corretos ali, apenas encruzilhadas – milhões delas – e elas estão ali para todos, não há via exclusiva. No caminho de Tantália foi a Atuação que me obrigou a fazer paragens – às vezes por obras à frente ou obstrução na via reflexiva –, e elas me fizeram enxergar as diversas possibilidades que se mostravam, e a pensar em meios para explorá-las. A atuação se desdobrava em tudo o que é possível desde que eu aceitasse ser desafiada sem oferecer desculpas ou esperar por autorizações de qualquer tipo para agir, por si só grandes desafios.

Por fim, escrevo esta monografia segundo a minha perspectiva do que se passou. Hoje, penso, o meu projeto – do qual a peça e sua construção são apenas uma parte - era ter um relâmpago que fosse capaz de iluminar por um instante o quão amplo pode ser o trabalho de ator. Creio que isso foi possível.

[1] ARTAUD, A. – O Teatro e seu Duplo. p. 20.

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