Parte V e VI - O Plantio e a Germinação
(Extraído de TANTÁLIA - O ator como testemunha no processo criativo, monografia apresentada em 2014, orientada por Maria Thais Lima Santos)
O Plantio (o desejo do grupo)
Meu anterior desejo por uma maior responsabilidade do ator para com a cena ou por uma autonomia em relação à criação se deu após algumas experiências nas quais os conceitos de colaborativo se borravam numa hierarquia desmedida – e sem potência criativa – em que vi (e vi-me) reduzida a função do ator à de executor, e que uma motivação de maior força seria, ao invés de terraplanar diversas funções teatrais em uma figura só, descobrir, no ator, uma função mais ativa – em que se colocar não seja sinônimo de discutir, opinar e teimar.
Creio na necessidade do empossamento da cena pelo ator, ou da valorização deste enquanto sujeito que Se encenar é converter em signos, atuar é deslocar esses signos, estabelecendo, em um espaço e tempo definidos, o movimento, ou mesmo, a deriva, desses signos. (...) aparece tanto como um destruidor quanto como um construtor de signos, [1] e cuja criação se altera mediante o seu contato com o espectador. Creio que só a partir de uma permeabilidade mútua entre ator e espectador é que algo relevante acontece.
Esses quatro atores se uniram por afinidades, tempo de convívio, admiração mútua e, o principal, um anseio por um trabalho de atuação verdadeiro, sincero, real, honesto, orgânico... Ainda não sei adjetivar essa atuação, mas intuo que ela habita o momento em que o ator se encontra presente, permeável, capaz de conduzir-se e de gerar o seu entorno. Nosso processo se deu de forma bastante aberta e intuitiva, tendo sempre o ator como objeto a ser explorado.
A Germinação (um movimento de observação)
Mas então o menino volta a mover-se e há uma nova transformação no tempo. Enquanto alguma coisa se mover sabe-se que o tempo passou. Antes, não. Antes que alguma coisa se mova é o tempo eterno, o suor, a camisa grudada na pele e o morto insubornável e gelado por detrás de sua língua mordida. Por isso é que o tempo não passa para o enforcado: Porque mesmo que a mão do menino esteja se movendo, ele não o sabe. [2]
Observo novamente o cadáver. Mais uma vez, um registro breve de uma memória que se fixou como a que se fixa ao longo de um velório. As quatro figuras dentro da sala moviam-se como espectros, e cada ação poderia ter sido feita há anos, assim como poderia estar sendo feita agora. Cada movimento era já uma lembrança, e de vez em quando vinha um pensamento a respeito da materialidade daquilo tudo. Lembro-me que a figura que trabalhei neste dia carregava muitas sacolas e estava em vigília, ou em um estado de insônia duradouro, que contribuía bem com uma percepção espectral do espaço de improvisação. Seus olhos eram os pesados de sono da atriz, o que atribuiu verossimilhança à expressão facial. Havia uma alternância de tempos de existência, pessoas como vultos, ações como rastros. Tudo ali parecia já ter acontecido, ou prestes a acontecer.
Gestos, palavras e ações pareciam não só fazer parte, mas dizer sobre tudo o que acontecia naquela sala, assim como o gesto no trecho citado de Garcia Lorca embala toda uma atmosfera de acontecimentos que mantém o tempo em suspensão por algum tempo. A experiência deste ensaio mostrou a viabilidade de um ensaio feito só por atores e a fluidez que pode provir dele, num trânsito improvisacional o tempo todo permeado pela lembrança de que são os atores os únicos agentes, sujeitos e testemunhas – pelo menos nesta etapa do trabalho - do que se passa. Apresentava-se uma prática sem diretor que transformava a observação e escuta em condutores processuais, e para os quais seríamos os mediadores.
Em nossa rotina de criação, um ensaio decorria do outro, e a lógica que fazia um vir em decorrência do outro era a da ausência, a do desejo incompleto e a da vontade de testar ideias. Isso se deduzia pela observação. Nesse modo intuitivo de operar, o perigo está nos momentos em que se deixa levar por uma inércia processual. Tínhamos liberdade para trazer as propostas mais variadas, de procedimentos simples de improvisação à formas alternativas de escrita dramatúrgica, à roteirizações que cruzavam experiências conjuntas passadas, e todas elas pediam atenção ao processo. Não havia restrições, mas negamos, de alguma forma, propostas de continuidade clara e fácil, pois o pensamento de desafio e de desassossego da atuação deveria perpassar todo o restante da criação.
De fato, poucas vezes neste processo estive confortável em minha atuação, e creio que isso se deu da mesma forma para os outros. Os momentos confortáveis eram os que precisavam ser questionados e implicados na prática. Por diversas vezes me martirizei com as lacunas identificadas no meu modo de criação. Queria de todo modo preenchê-las, acreditando que a superação das insuficiências era um bom motivo para pensar em proposições e construções de figuras. Como conselho, foi-me dito que o teatro não é uma sala de terapia, que lacunas devem ser identificadas e que acerca delas, devem-se buscar estratégias para penetrá-las, circundá-las, mas nunca negá-las. São elas as características que me diferenciam, reveladoras de fraquezas que possibilitam o reconhecimento de forças invisíveis.
O processo demandava um espírito pesquisador, que se coloca não apenas presente, mas amplo, vertical, capaz de elevar-se acima das palavras do texto[3]. Sentia uma dificuldade imensa em propor práticas a favor dos atores ou do processo, e ao mesmo tempo me cobrava tamanha propositividade que me tornava espectadora, especuladora que enumera procedimentos para atingir conceitos em cena. A distância que pode se criar entre a especuladora e a atriz chegou a ser grande no processo, e vejo aí um erro recorrente, o do ator autossuficiente. De nada adianta tentar decifrar o modo de criação dos outros atores, tentar vislumbrar o que o público compreenderá do que vai ser apresentado, tentar traduzir todos os conceitos para um formato cênico, dar conta de suprimir as carências do outro e do processo como um todo, se o ator esquece, por fim, do rigor e da delícia com o próprio trabalho. Não é adquirindo o olhar de um diretor que se aprende a substituí-lo ou suprimi-lo da sala de ensaio - e isso de nada serve a não ser para perpetuar a ideia de opostos insolúveis. Essa preocupação demasiada com o que não pertence ao seu domínio – mas ao tempo e à experiência conjunta – é uma procrastinação que nós nos damos de presente. São tarefas que distraem, apesar de serem produtivas enquanto discussão. O ator deve, principalmente se toma a cena como fundador, não ver na arrecadação de habilidades algo tão bom. Se o diretor é a cabeça e os atores suas mãos (metáfora tão usada para a distinção), pois se apoia na necessidade mútua e ao mesmo tempo estabelece qualquer tipo de hierarquia orgânica, a questão é pensar a mutação do ator a partir do encontro de novas vozes ou de olhares mais amplos. O ator não deve intencionar tomar o lugar do diretor, mas ampliar o próprio olhar para além de estâncias subjetivas e interpessoais, abarcando ou não funções anexas às suas, e principalmente deslocando sua criação para lugares inexplorados.
Uma das aquisições nesse processo foi a sensibilidade ao tempo do acontecimento, qualidade que inerente ao bom diretor, que assimilamos como responsabilidade. É necessário dar tempo ao seu acontecimento. Esta indicação foi feita dois dias antes da estreia do espetáculo, e alterou por completo a minha postura com relação às minhas ações e às dos outros, além do próprio trato com o público. Não temer o tempo que a ação tem para que ela se constitua diante os olhos dos outros é um ato de generosidade para o público e para si mesmo. O ator teme atrapalhar o andamento de um roteiro e acaba por se preocupar mais com o tempo de uma cena do que com a ação que preenche o tempo. O ator – a atriz, no caso - teme o tempo, porque o cumprimento é mais fácil, e no cumprimento de uma tarefa, o objetivo é o final, não o percurso. Aceitar o tempo de uma ação exige que o ator consiga sustentar seu peso, equivaler-se a ele. A ação não pode desabar, nem o ator – e é neste limiar de forças, neste momento que se evidencia a fragilidade de ambos, que se expõe o ator em relação ao seu fardo, que se alimenta a perspectiva de um fracasso ou de um êxito.
Dou um dos exemplos que tanto despertou um olhar específico, pertencente à sensibilidade de diretor, quanto deu a ver a necessidade de aceitar o tempo da cena. Uma vez propus um jogo que pretendia, ao final reproduzir uma cena de algum filme. Porém, a cena original só seria do conhecimento de alguém que a escolhe, e repassada aos outros (diretor e atores) por meio de indicações. Por fim, o diretor dirigiria os atores sem mais interferência, mas com indicações que quase sempre pretendiam aflorar outro modo de se colocar. As provocações variaram de uma música ou imagem – se houvesse racionalismo exagerado, por exemplo – a trechos de fala fora do contexto do filme, imaginário de lugares, uso de objetos, pensamentos não compartilhados, etc. Foi uma bateria intensa de alternância de papéis e de sujeição aos ideais do outro que por fim, resultou na abdicação. A cena, que não é nem de perto reprodução da que a motivou, passa pela última etapa, a dos atores. As imagens que se constituem na cabeça de um idealizador diferem completamente das que surgem das ações. E tudo isso demanda observação e paciência. A sensibilidade que se estabelece neste momento é a da espera no ator. Um misto de expectativa pela cena que eu gostaria de ver com a ignorância total de não saber o que segue.
O ideal é cheio de pressa, o acontecimento pode demorar a acontecer. Me lembro que havia uma indicação que dizia que eu era uma mulher velha, com hábitos velhos. Se uma rubrica diz que “a mulher está há muito tempo neste sofá”, eu posso ver horas, dias, ou uma eternidade. É bonito ver quando um ator entende, à sua maneira, uma indicação, e dá tempo à sua execução. Qualquer olhar respeita o momento em que algo se constitui no interior da cena, em que nada dissipa e o mundo parece se condensar no ato do ator, preenchido de algo anterior, que é a sua própria imaginação. A imaginação convida o observador a imaginar, e a cena acontece justamente no que ela não esclarece, mas no que ela gera em imagem.
[1] DORT, B. - Revista Sala Preta. vol. 13, n. 1, jun 2013, p.54.
[2] MARQUEZ, G. G. - 1974, p. 68.
[3] Jurij Alchitz - La Matematica dell Attore” (2004)